segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Quem é Gregório de Matos Guerra

Quem é Gregório de Matos? Não é, são. Existem vários Gregórios de Matos. O primeiro é a pessoa física, nascida na Bahia em 1623 (ou 33, ou 36) provavelmente no dia 7 de abril, terceiro filho de um próspero fazendeiro, que estudou direto em Coimbra, retornando posteriormente a Bahia, morando no recôncavo, sendo exilado em Angola e voltando ao Brasil para viver no Recife. Morreu em 1696. Sua existência é evidente, a autoria de seus poemas contestável, a qualidade de sua obra discutível e a variedade de opiniões sobre o poeta fascinante. Sua vida e as diversas leituras de sua obra talvez sejam mais barrocas do que a própria poesia. Escritores, sociólogos e críticos literários discutem e rediscutem Gregório, criando e recriando vários vieses de Gregórios. Redescobrir Gregório é redescobrir e redefinir o Barroco; um caminho sem volta. Talvez o fato de não ter editado sua obra em vida, da escassa documentação histórica de sues paradeiros alimentem esta pluralidade. Neste texto encontramos alguns Gregórios fantasiados na imaginação e percepção de alguns dos maiores nomes da Crítica Literária Brasileira.
No final do século XIX, um dos mais empolgados críticos de Gregório de Matos foi Silvio Romero em sua História da Literatura Brasileira. Romero diz que “se a alguém no Brasil se pudesse conferir o título de fundador de nossa literatura, esse deveria ser Gregório de Matos Guerra. Foi filho do país; teve mais talento poético que Anchieta; foi mais do povo; foi mais desabusado; mais mundano, produziu mais e num sentido mais nacional.” Sendo um escritor mais social e menos academicamente literário, Romero lê um Gregório imerso no seu mundo, com uma poesia social compatível com a urbis soteropolitana. Não vê muita diferença entre a poesia e a vida do autor e enxerga uma harmonia entre indivíduo, meio e obra. Não menosprezando sua poesia lírica, Romero admira mais a poesia satírica do Baiano e enaltece o refino de sua crítica social aos diversos nichos da sociedade e diverte-se com suas tiradas advocatícias relatando fatos particulares e interessantes desta personalidade.
Antônio Cândido, eterna referência em qualquer tratado de literatura brasileira, não prioriza a obra de Gregório em sua Formação da Literatura Brasileira. Começa sua obra no Arcadismo uma vez que este possui mais registros históricos e em concordância com sua tese de causa-efeito, de continuidade, de sequência de influências e de caminhos diacrônicos para o progresso da nossa literatura, opinião esta que vai causar críticas e cobranças por Haroldo de Campos no seu Sequestro do Barroco.
Haroldo de Campos analisa a obra de Gregório após ter um aprofundamento intenso na poesia e contato com outras críticas como a de Jõao Adolfo Hansen e Alfredo Bosi. Talvez por ser poeta, Haroldo de Campos valoriza a poesia em si, sua qualidade artística, independente do meio e do tempo em que se encontra. A idéia da poesia anacrônica proposta por Haroldo de Campos vê que a poesia de Gregório pode ser lida e relida, podendo tornar-se sempre atual como a poesia Epílogos e a Triste Bahia rejuvenescida por Caetano Veloso. Haroldo, nitidamente um admirador da poesia de Gregório, enxerga qualidades nesta poesia dentro e fora de seu tempo.
Alfredo Bosi, menos compenetrado na veracidade e oficialidade da poesia de Gregório que João Adolfo Hansen, analisa a obra de Gregório, principalmente A Bahia ( ou Triste Bahia) no capítulo Do Antigo Estado a Máquina Mercante de seu livro Dialética da Colonização. Esta analise, mais da obra que do autor, é minuciosa e rica em detalhes. Alfredo Bosi “imagina” uma série de fatos e ocorrências muito interessantes na poesia de Gregório que “podem” ser verdade. As palavras “imagina” e “podem” da frase anterior mostra que existe muita verossimilhança na sua análise, mas seria precipitado dizer que era exatamente aquilo que o autor queria dizer. Alfredo Bosi, nesta sua liberdade para analisar, exercita como poucos esta criação e recriação de um novo Gregório, tema central deste texto.
O professor Dácio Antônio de Castro escreve que “a poesia de Gregório surpreende até hoje pela vitalidade criativa e pela variedade temática, tanto mais significativas por ter sido ele o primeiro talento literário que se manifestou na cultura brasileira.” Dácio classifica sua poesia em quatro grupos: satírica, lírico-amorosa, religiosa e erótica e justifica esta pluralidade do autor em sua miscigenação e formação uma vez que Gregório é filho de um português com uma Brasileira, conheceu mundos diferentes como o colônia e a metrópole e teve contato com diversas culturas quando em Coimbra, conhecendo a obra de Camões, Quevedo e Gongora, entre outros.
No estudo introdutório da antologia Poemas Escolhidos – Gregório de Matos, José Miguel Wisnik é técnico em informações e comedido em opiniões. Primeiramente apresenta uma biografia informativa do autor e posteriormente um estudo crítico da obra. Neste estudo crítico, assemelhado ao de seu colega de USP Alfredo Bosi, analisa bem poemas e partes deles, apresentando o tema mas também intensamente a forma do poema, como métricas e rimas. Não polemizando muito, Wisnik parece convidar o leitor para sua própria viagem, para a criação de seu Gregório.
Transcreve-se agora o texto De como o poeta ameaçou os militares de 64 de James Amado Para a Folha de São Paulo Mais de domingo, 20 de outubro de 1996, que não é uma crítica literária de Gregório de Matos mas curioso, é certamente mais um de seus renascimentos: "É impossível riscar da memória aquela manhã do verão de 1969. O telefone me traz a voz do governador de Estado, o acadêmico Luís Viana filho, em uma convocação imperiosa: ‘Preciso falar com você agora. Meu motorista vai apanhá-lo. Por favor, é urgente’. Recebeu-me no gabinete do palácio residencial. Homem de trato cortês e lhano, mas político habituado a não revelar suas emoções, naquele dia Luís Viana Filho estava visivelmente agitado. Estendeu-me uma folha de papel com o timbre das Forças armadas e um ostensivo carimbo: ‘confidencial’. E se pôs a andar um passo brusco, de um lado a outro, entre a mesa de despachos e a poltrona por mim ocupada, enquanto eu lia o documento surpreendente. Nele, o general comandante da região militar interpelava rispidamente o governador e exigia dele que lhe apresentasse, ‘por escrito e no prazo de 24 horas, as razões que o tinham levado a apoiar uma edição tão subversiva como a das obras de Gregório de Matos’. O chefe militar da região provocava cruamente o governador, ao fingir desconhecer que este, embora civil e escritor, havia sido nomeado para o cargo pelo marechal-presidente da República militar e tivera seu nome sancionado pela dócil Assembléia Legislativa. ‘É agora?’, perguntei-lhe. ‘Não vou responder, é claro’. ‘Tome nota do que eu digo: na próxima semana, um general meu amigo assumirá o comando militar no Planalto. Passarei de caça a caçador’. Guardei suas palavras e o teor do ofício confidencial. O que Luís Viana Filho prenunciara aconteceu sem demora. Passou de caça a caçador. Antes, um troço de soldados armados invadiu o departamento de cultura, seqüestrou e incinerou as coleções da obra de Gregório de Matos. O diretor do órgão foi preso. Duzentos e sessenta e cinco anos após sua morte no Recife, Gregório de Matos retornava à Bahia. E bem à sua maneira, perturbando a paz dos poderosos. Veio para ficar."
Gregório de Matos Guerra é o melhor nome da literatura brasileira para criar controvérsias. Gregório é um heterônimo homônimo tão paradoxal quanto esta definição. Talvez ele seja uma boa definição de mito; ou uma boa definição de Barroco. Se fantasiar é uma das premissas da literatura, criar seu próprio Gregório de Matos é fazer literatura, é imaginar,é divagar.

O Indianismo de Alencar

O Indianismo de Alencar e a busca pela identidade brasileira.

Certamente José de Alencar não foi o primeiro escritor a apresentar o índio americano tropical como tema de uma obra literária. A Carta de Caminha, elemento matriz dos textos de referência ao Brasil apresenta descrições do elemento indígena. O jesuíta José de Anchieta inclui o índio em sua poesia e como personagem de suas peças teatrais. Na segunda metade do século XVIII, Basílio da Gama escreve O Uraguai (1769) mostrando a epopéia da batalha entre os índios dos Sete Povos das Missões e o exército luso-espanhol comandado pelo general Gomes Freire de Andrade e, também no gênero épico, mas com modelo camoniano, o Frei Santa Rita Durão, nascido no Brasil mas com vida mais intensa na Europa, escreve Caramuru (1781), onde o branco Diogo Álvares Correia, apelidado pelos indígenas de Caramuru, naufraga em costas brasileira e vai conviver com canibais nativos, fazendo referências a fatos que vão do “achamento” do Brasil até o século XVIII. Posteriormente, no início do século XX, Mario de Andrade escreve Macunaíma: o herói sem nenhum caráter (1928) e seu amigo não menos irreverente e polêmico Oswald de Andrade apresenta o Manifesto Antropófago (1928). Nestas obras modernistas, o índio é mais selvagem, canibal, natural e menos figurado nos bons sentimentos morais, católicos e sociais dos brancos portugueses como no índio romântico de Alencar. Mas se Alencar não foi o primeiro nem o único a escrever sobre o índio brasileiro, o que tem de especial em sua obra indianista que merece relevo?
José Martiano de Alencar nasceu no Ceará em 1829. Seu Pai, o senador homônimo do filho José Martiniano de Alencar, ex-padre e com idéias liberais, mudou-se para a corte no Rio de Janeiro quando o filho ainda era menino; foi um dos mentores do golpe do Clube da Maioridade que levou o garoto D. Pedro II ao trono em 1940. Na corte Alencar recebeu educação primária e secundária e mudou-se para São Paulo onde iniciou seu curso de direito. Em São Paulo teve contato com a poesia byronista liderada por Álvares de Azevedo, três anos mais velho que Alencar. Concluiu seu curso de direito em Olinda e voltou ao Rio de Janeiro onde iniciou suas atividades de escritor no Correio Mercantil em 1853. No ano de 1856, Alencar provoca uma grande polêmica ao criticar o institucional épico da fundação do Rio de Janeiro de Gonçalves de Magalhães: Confederação dos Tamoios. A obra de Magalhães, praticamente o poeta oficial da coroa, fora patrocinada pelo próprio imperador D Pedro II e possuía um estilo clássico e formal que não agradou Alencar. Como resposta á obra, Alencar publica, com recursos próprios, O Guarani, que não parecia um épico na sua forma, mas de uma qualidade artística que o tornava a verdadeira epopéia romântica do Segundo Reinado.
No enredo de O Guarani, Peri é o rei de uma nação gentil que deixou sua mãe, seus irmãos e sua terra para seguir sua divindade branca Ceci. Na batalha pelo coração de Ceci, Peri enfrenta o português Álvaro e o italiano Lorerdano. Vence a valentia, a natureza e a perspicácia de Peri. Álvaro vai ter outra relação inter-racial com Isabel, prima mestiça de Ceci. A medida que Peri vai se tornando herói, ele vai embranquecendo sua alma e adquirindo valores nobres, europeus e católicos. Esta ligeira falsidade pouco convincente do índio de Alencar tinha uma verossimilhança que fez com que o povo da época os aceitassem como perfeitos e os adorassem. O Guarani projetou fortemente o escritor José de Alencar e semeou a idéia da formação de um povo brasileiro baseado na miscigenação.
Alencar muito mais maduro e já um escritor consagrado, retoma a relação índio-branco em Iracema (1865). Enquanto em O Guarani o índio se relaciona com a branca, em Iracema ocorre a inversão, com a personagem indígena feminina. Iracema, a virgem dos lábios de mel ou a virgem do sertão, deixa seu povo, os Tabajaras, para seguir seu amor por Martim, o guerreiro branco português. Enquanto Martim é uma metonímia do povo português, do europeu, do civilizado e do mundo branco, Iracema representa a natureza exuberante. Iracema tem a sensibilidade e a fragilidade da natureza, é pura e perfeita. Alencar descreve de maneira poética as qualidades que fundem Iracema e a natureza: “seu lábio é de mel, seu cabelo é como a asa de graúna, seu hálito é doce como a baunilha, seu talhe é de palmeira, seu andar é mais rápido que o da ema selvagem”. Alem disso Iracema é um anagrama da palavra América, tornando o romance uma excelente alegoria do contato entre a Europa e a América e principalmente a devastação da América pela Europa.
Iracema é também chamada pelo próprio autor como Lenda do Ceará. Além de representar muito bem as tribos primitivas cearenses como os tabajaras do sertão e os pitiguaras do litoral, Alencar descreve muito bem a geografia de sua terra natal, citando rios, montanhas, plantas e animais. Martim e Iracema têm um filho, Moacir, o filho da dor, que representa o primeiro cearense: a criação de um povo pela mistura de raças. Gilberto Freyre vai, no início do século seguinte, enaltecer esta miscigenação de raças na formação do povo brasileiro, mas Freyre acrescenta o negro, elemento raro na obra de Alencar. Em 1843, o recém criado Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, idéia do Imperador, premiou o ensaio de Karl Friederich Phiipp Von Martius: How the Histoty of Brazil Should be Written, onde o naturalista alemão que o Brasil “nunca deve perde de vista os elementos que lá contribuíram para o desenvolvimento do homem. Esses elementos diversos vêm de três raças (...) a população atual consiste em uma mistura nova, cuja história, portanto, tem uma marca particular.” Este ensaio, que pode ter influenciado Alencar, continua acrescentando que esta mistura faz muito bem aos nativos principalmente pela introdução do sangue branco nas raças americanas. Alencar tem esta visão de que uma jovem população diferente da européia surge no Brasil, porem desprezando as origens africanas, talvez por ter sido deputado eleito com o apoio dos produtores de açúcar do nordeste que tinham na escravidão uma atividade comercial interessante ou pelo negro ainda não ter influenciado tanto os demais povos como posteriormente iria ocorrer na época e análise de Freyre.
Todos estes elementos regionais que encontramos nas obras indianistas de Alencar já o fazem um dos formadores da literatura brasileira, mas há outro elemento muito importante de sua obra que faz com que podemos classificá-la como ficção de fundação: a linguagem. José de Alencar foi um dos principais criadores da língua literária brasileira, no sentido de praticar ousadias estilísticas e até sintáticas próprias de nossa gente e estranhas ao português falado em Portugal. Alencar escreve em uma língua brasileira que contem elementos do Tupi, certas sensorialidades visuais, propriedades onomatopéicas, descrições de paisagens, plantas e frutas brasileiras. Seu texto é classificado em prosa poética por Machado de Assis que escreve no Diário do Rio de Janeiro: "Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo e da meditação, escrito com sentimento e consciência… Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro… Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima”. Este romance em prosa de linguagem livre opõe-se às imitações dos clássicos feitas pelos árcades no período literário anterior. É uma linguagem genuinamente brasileira que faz com que Alencar, junto com sua vasta obra, torne-se o primeiro grande escritor brasileiro, fundando uma literatura original e produzindo uma identidade brasileira que influenciou muito escritores posteriores.