domingo, 24 de outubro de 2010

Clássicos: Ler, Reler e Ter.

Existem alguns livros que têm um significado muito grande para povos de certa cultura, alguns livros que possuem um significado maior ainda para um indivíduo. Costumamos chamá-los de clássicos (sem necessariamente associá-los à época ou escola literária do classicismo). Esta palavra: clássico, que hoje em dia pode até ser usada para partida de futebol entre Flamengo e Fluminense no Maracanã, uma banda de rock dos anos setenta que perdura até hoje ou um filme antigo de grande bilheteria, tem na literatura um significado muito amplo e até discutível que no mínimo significa: de respeito.
O italiano Italo Calvino em sua obra: Por que ler os clássicos, começa brincado com a seguinte definição: Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: “Estou relendo...” e nunca “Estou lendo...”. Esta afirmação de efeito específico para pessoas de mais idade que se consideram cultas, não tem obviamente muito efeito para os jovens, uma vez que estes costumam ter um contato compulsório com os clássicos no período escolar, podendo até criar um princípio de antipatia com a obra, principalmente por falta de bagagem para o entendimento do texto e de suas emoções. No que um garoto de dezesseis anos poderia se identificar com uma mulher formada adulta e adultera como Ema em Madame Bovary de Gustave Flaubert? Talvez seja mais fácil estes jovens se identificarem com alguns clássicos infanto-juvenis e então entenderem algumas da muitas intertextualidades de um filme com Shrek, um quase Dom Quixote atual da cinematografia infantil. Agora, da definição inicial de Italo Calvino, para os mais maduros e letrados o prefixo re em reler tem muito da vergonha de admitir que nunca leu uma obra considerada um clássico e de estar atrasado com sua formação cultural. O ego do conhecimento vezes ultrapassa o ego da beleza pessoal. Mas não há motivo para a preocupação, levante a mão quem já leu todos os romances de José de Alencar, de José Saramago ou de Jorge Amado? Ficou faltando algum conto de Machado de Assis ou de Guimarães Rosa para ser lido? Para seu deleite, sempre sobrará alguma obra importante para apreciação. Então Italo Calvino conclui: “Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los.”.
Uma vez que a lista de clássicos pode se tornar interminável, vale a pena se ter o contato com alguns na juventude e outros em uma fase mais adulta. Privilegiados aqueles que têm fraqueza na memória e podem ler Dom Casmurro duas vezes quase com se fossem duas primeiras vezes: numa primeira, na adolescência, curtindo as brincadeiras infantis atrás do murro no quintal dos Páduas e o delicioso pentear de cabelos em Capitu por Bentinho, e, numa segunda vez mais maduro, recurtir a loucura do ciúme de Bentinho e das descrições de um texto fascinante de Machado de Assis. Assim como a releitura de um clássico e uma leitura de descobertas como da primeira vez. A primeira leitura, para quem tem relativa bagagem cultural, não é de toda crua, dado que muitas passagens dos clássicos estão embutidas nas convenções sociais. Dificilmente alguém vai ler Os Lusíadas sem saber que Vasco da Gama chega às índias ou ler Édipo Rei sem ter ouvido uma vez se falar de complexo de Édipo. Assim ainda Italo Calvino diz: “Os Clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precedem a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram.”.
Outro fator que os clássicos trazem em si é uma quantidade gigantesca de obras sobre o clássico. Livros que falam sobre livros e que interferem, de modo positivo ou até mais negativo, na posterior leitura. Estas obras atraem, até por força da necessidade de produção acadêmica para dissertações e teses, repetindo ou inventando barbúrias sobre o texto. A leitura virgem do texto contém um prazer de descoberta muito maior do que a orientada (ou desorientada). Não vamos retirar o prazer da perda do hímen literário daqueles que ainda o podem ter. Mário Quintana, autor de pensamentos como: “Uma definição apenas define os definidores.” ridiculariza esta academização dos textos sobre os textos com duas anedotas deliciosas:

“Essa mania de ler sobre autores fez com que, no último centenário de Shakespeare, se travasse entre uma professorinha do interior e este escriba o seguinte diálogo:
- Que devo ler para conhecer Shakespeare?
- Shakespeare.”

ou então:

“- Você ainda não leu O Significado do Significado? Não?Assim você nunca fica em dia.
- Mas eu estou só esperando que apareça O Significado do Significado do Significado.”

Estas idéias remetem a uma frase do amigo e poeta Julio Paulo Marcondes: “Quem sabe faz, quem não sabe ensina!”, sobre críticos das críticas ou ainda, do mesmo autor: “Escritores, cineastas e artistas em geral são críticos frustrados!”. Noel Rosa não fica atrás (nem na frente): “Samba não se aprende no colégio.” Assim Italo Calvino também diz: “Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente a repele para longe”.
Outro fator importante do clássico é a pessoalidade, a relação que este tem com o leitor e a interferência que nele causa. O cânone pessoal. Se pedires para várias pessoas para indicar os dez livros mais importantes para a humanidade, dificilmente ter-se-á uma intersecção completa. Assim como nos anos oitenta chegava-se a residência de uma pessoa e falava-se: “Posso ver sua coleção de discos (hoje vinis)”, a biblioteca de cada um é uma eleição de seus clássicos. Uma professora de literatura da UFSC constantemente comenta: “Esse é que nem bíblia de hotel, tem que ter na gaveta”. O mesmo Júlio Paulo Marcondes citado acima chega um dia feliz da vida e barda: “Conheci a Biblioteca do José Mindilim”. Então recebe como resposta: “Conheceu o José Mindilim ou sua biblioteca?” E sabiamente completa: “A melhor maneira de conhecer uma pessoa é conhecendo sua biblioteca, logo, os dois.” Será que ele já leu toda sua biblioteca? O sonho de todo grande homem é um dia poder ler toda sua biblioteca.

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